43  Mapa das zonas de vizinhanças: dispositivo para encontros (im)possíveis.

Autoras
Afiliação

Universidade Federal do Ceará

Universidade Federal do Ceará

43.1 Pesquisar encontros (im)possíveis e habitar territórios existenciais como caminho formativo

Este ensaio é uma rota elaborada a partir dos achados da pesquisa de mestrado intitulada “Mapa das zonas de vizinhanças: tecnologia para encontros (im)possíveis no fazer políticas públicas de guardas municipais e articuladores da juventude em territórios vulnerabilizados de sobral”, realizada sob orientação da professora Dra. Érica Atem Gonçales de Araujo Costa no Mestrado Profissional em Psicologia e Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará - Campus Sobral.

Como modo de escrita, opto por escrever este ensaio ora em primeira pessoa do singular ora em primeira pessoa do plural, para conjugar a imensidão política e afetiva de vozes que constituem a pesquisa. Como rota de leitura, propomos inicialmente um caminho de contextualização do problema da pesquisa, em seguida tecemos reflexões sobre o mapa das vizinhanças como dispositivo formativo e concluímos com três cenas analíticas, no tópico conversações ficcionais entre violências e resistências, que podem ser lidas a partir de localizadores-analisadores elaborados pelo cruzamento dos mapas de vizinhanças dos participantes.

43.2 Tramas entre violências e resistências na cidade de Sobral (Ce)

As tramas entre violências e resistências na cidade de Sobral, município cearense no qual atuo como trabalhadora das políticas públicas de Direitos Humanos e da Assistência Social (SEMTAS), através da Unidade de Gerenciamento de Projetos de Prevenção de Violências (UGP-PV), são contexto para nossa pesquisa. Em face disso, é através da UGP-PV que minha trajetória como gestora pública e psicóloga social se cruza com a trajetória de adolescentes e jovens de territórios periferizados de Sobral.

Este estudo se insere, assim, no panorama específico de acirramento de violências, mais precisamente as que se expressam por homicídios de adolescentes e jovens e se manifestam de forma ampliada na região Nordeste do Brasil. Isso vem à tona ao se observar que a taxa de homicídios no Ceará cresceu 159,7% ao longo de 11 anos. O índice de mortes passou de 23,2 homicídios por 100 mil habitantes em 2007 para 60,2 em 2017, conforme demonstra o Atlas da Violência (2017), a partir dos dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Ministério da Saúde (Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, 2019). Em 2020, dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social apontaram que a violência letal contra meninas adolescentes disparou. As 114 adolescentes que foram assassinadas no estado do Ceará em 2018 atestam que houve um aumento de 43% em relação a 2017 e de 322% em comparação com 2016.

Este cenário necropolítico repercute seus efeitos nos agentes das políticas que trabalham em territórios vulnerabilizados. É preciso destacar, pois, que o conceito-ferramenta de necropolítica intersecciona este ensaio, e sinalizamos que o tomamos como referência a partir do proposto pelo filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe (2018, 2020) para instrumentalizar o cálculo da produção de morte pelo Estado, como expressão do racismo. O conceito de necropolítica nos ajuda, assim, na problematização de noções como estado de sítio, militarização social e criminalização da pobreza nas sociedades contemporâneas. Nessa direção, o conceito dialoga diretamente com a poblemática da violência letal que tem como alvo jovens negros periféricos em um estado permanente de vigilância, terrorismo, zonas de segregação e repressão, em uma linha tênue entre legalidade burguesa e total ausência de lei.

A necropolítica é um pensamento complexo que oferece muitas formas de compreensão para processos políticos contemporâneos. Dentre outros autores fazem uma leitura crítica desse conceito, destacamos pesquisadores nordestinos que estudam violência letal e resistências, como Barros et al. (2019), que nos provocam um aceno ético nas práticas de enfrentamento às violências. Essa leitura crítica envolve a denúncia de uma política de morte, mas, sobretudo, amplifica que “a importância ética da ideia de potencialização dos povos implica que aprendamos a ler a realidade circundante e a (re)escrevermos nossa própria história.” (Barros et al., 2019, p. 9). No sistema colonial capitalista, é lucrativo propagar que não há saída. Contudo, o mundo está em convulsão, as vidas negras, feministas, indígenas e proletárias não estão silenciadas diante da opressão e exploração, pois novas lutas estão por vir, e é sempre possível transformar mundos. Nesse sentido, o exercício político que fazemos neste ensaio é cartografar o enfrentamento à necropolítica no cotidiano de alguns agentes das políticas públicas do município de Sobral, uma guarda municipal e dois articuladores de juventude da UGP-PV.

Desse modo, foi pelas/nas composições entre nosso trabalho como formadora na UGP-PV, a vida em Sobral e as resistências em curso, que formulamos o problema da pesquisa: como uma política de formação com guardas municipais e articuladores e articuladoras da juventude enfrenta questões da necropolítica e engendra resistências nos processos cotidianos de trabalho? Para responder a tal questionamento, as experiências de alguns guardas municipais e articuladores da juventude que vivenciaram processos formativos na UGP-PV entre os anos de 2018 e 2019 tornaram-se campo da pesquisa, uma vez que a unidade tem constituído diretrizes desde o ano de 2018, por meio das evidências e recomendações do relatório “Cada vida importa” (2016), para políticas formativas que atuem na transformação da situação de violência e conflitualidade de territórios periféricos.

Na tentativa de pensar (com) o cruzamento dos caminhos formativos de articuladores de juventude e guardas municipais, tecemos neste estudo uma experiência para encontros (im)possíveis com três desses agentes das políticas, percorrendo a partir da escuta, do vínculo e da narratividade cartográfica a criação do dispositivo artístico-político “Mapa das zonas de vizinhanças”, uma tecnologia para o encontro de aprendizagens no e com o território que emerge dos fazeres de agentes da política pública.

Tomamos como interlocução a noção de dispositivo como ferramenta analítica conforme proposta por Foucault (1999), ou seja, um conjunto heterogêneo que tece uma rede de ditos e não ditos entre discursos, instituições e enunciados. Foucault trama este conceito a partir de três dimensões: saber, poder e produção de modos de subjetivação. É na operação complexa entre esses eixos e na produção que os sujeitos formulam de si e do mundo a partir das relações entre a política pública, o Estado violento e o enfrentamento à necropolítica que tomamos a noção de dispositivo artístico-político como relevante para a pesquisa.

Importante considerar que a possibilidade de criação de encontro (im)possível entre agentes da política pública não propõe um apaziguamento e/ou neutralização das forças de tensão, contradição e complexidade entre territórios vulnerabilizados pela segurança pública. Por isso, propomos, a partir do dispositivo “Mapa das zonas de vizinhanças”, um diálogo formativo entre dois articuladores de juventude e uma guarda municipal que se expressa como uma conversação forjada a partir das complexidades e sensibilidades nos modos de fazer e de (re)existir frente ao necro poder.

43.3 Mapa das zonas de vizinhanças como dispositivo metodológico

No percurso da pesquisa, tivemos encontros individuais com as(os) três participantes que ocorreram na forma de entrevistas cartográficas em que foram produzidos diários de campo nos quais as entrevistas foram transcritas na íntegra. No decorrer das entrevistas cartográficas, experimentamos um modo de fazer que intitulamos de “Mapa de vizinhanças”, uma artesania que se compôs através de perguntas e elaboração de um mapa com os materiais que estavam disponíveis, como as fotografias que dialogam com cenas da pesquisa registradas pela pesquisadora nos momentos das visitas ao território e/ou intervenções de trabalho na UGP-PV, além de outros recursos táteis, como tinta, pincel, lápis de cor, barbante e folha A3.

Como o encontro com as/os participantes se deu de forma individual, gostaríamos de suscitar, a partir dos elementos analisadores de cada conversa, como as fotografias e perguntas, um encontro ficcional a partir do cruzamento dos mapas elaborados por esses sujeitos. Este exercício ficcional tem relação com a problemática da pesquisa, pois interroga como criar uma vizinhança entre trajetórias que comumente estão em pólos de inimizade cruzados pela necropolítica. Nessa direção, a noção de vizinhança surge como horizonte ético para o que materializamos como dispositivo artístico-político, algo que pode ser usado, adaptado, disponibilizado, e que produz efeitos de problematização para os campos das políticas de formação, de arte, educação e direitos humanos.

Utilizamos a expressão ficção em trama com os estudos de Ranciére (Rancière, 2009) sobre arte e política, não como oposição a um regime de verdade, mas como efeito político que faz emergir o laço social a partir de vetores como a memória, o discurso, as narrativas e as imagens. Nesse sentido, “a política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o se faz e o que se pode fazer” (Rancière, 2009, p. 59).

Em resumo, propomos planos diferentes de pesquisa. Em um primeiro momento, é elencada uma experimentação para elaboração do “Mapa de vizinhanças”, cruzando os fragmentos das conversas, das perguntas, dos sons, esculpindo imagens, dúvidas e pistas que surgiram ao longo do percurso. No plano seguinte às conversas individuais, foi possível criar um exercício ficcional de encontro entre os mapas construídos pelos participantes. A esse exercício intitulamos “Mapa das zonas de vizinhanças”, movimento que amplificou as vozes dos sujeitos e cruzou várias zonas complementares e dissidentes em um espaço comum.

Atentas aos ensinamentos de uma política de narratividade, optamos por apresentar os participantes da pesquisa como personagens que suscitam uma imaginação política, um gesto que catalisa discursos entre ditos e não ditos nos mapas de cada personagem. Os personagens da pesquisa são descritos como Margem do rio, Estado violento, Artista-articulador, B-boy, Guarda-cantora e Cartógrafa-formadora atuante nas políticas públicas.

O modo de fazer cartográfico inspirou várias formas de encontro com estes mapas de vizinhanças das(os) personagens, já que a composição singular que cada sujeito expressava com o seu próprio mapa nos convidava a habitar territórios existenciais múltiplos, com agenciamentos coletivos. Por isso, o “Mapa das zonas de vizinhanças” se tornou um material multimídia sensível, tátil, sonoro e visual, constituindo-se como uma ferramenta de várias linguagens para conversação com as políticas públicas, com os espaços formativos, com a Universidade e com outros espaços que possibilitem encontro com a diferença. É, pois, um produto técnico que tem como objetivo a documentação sensível do encontro com agentes da política pública que comumente estão impossibilitados de diálogo no seu cotidiano devido ao projeto necropolítico em curso.

A produção do “Mapa das zonas de vizinhanças” se relaciona com a ideia de colocar em jogo movimentos dissidentes e heterogêneos a partir de territórios existenciais. Nesse sentido, trabalhamos a partir do conceito de território proposto por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, no capítulo “Acerca do ritornelo” (1995), cuja tessitura passa pela expressão, pelo ritmo, e não pela funcionalidade utilitária de uma identidade. Desse modo, a constituição do território de jovens periféricos e da segurança pública se engendram com vetores que se afetam transversalmente. Interessa-nos, portanto, tangenciar, por meio do “Mapa das zonas de vizinhanças”, a dimensão formativa entre os movimentos de territorialização e desterritorialização, “já que um componente territorial ou territorializado pode pôr-se a germinar, a produzir” (Deleuze & Guattari, 1995, p. 118).

Na entrevista cartográfica de um dos articuladores da juventude da UGP-PV, podemos visualizar como se expressa a multiplicidade de vetores que povoam um mesmo território.

O território é diverso…. O que faz eu andar lá [em um bairro rival] é que a galera tem respeito pelo que represento. O crime mesmo sabe disso. Eles têm a lei, mas eles sabem que às vezes é preciso ceder…. Eles dizem: aquele cara é o cara do hip hop, ele vem aqui para fazer cultura para os pivete, e essa construção abre passagem (Trecho da entrevista com B-boy, 2022).

A expressão da diferença no território também foi considerada na entrevista cartográfica da profissional da segurança pública municipal, quando ela lembra da formação em direitos humanos que vivenciou através da UGP-PV no ano de 2019.

… Naquela formação estávamos em campos diferentes. A galera dos direitos humanos, a galera da guarda. Só que tinha algo que nos ligava ali…. A cultura do medo é implantada nas pessoas, quase sempre o agente de segurança é inimigo, e ele é inimigo não só porque você o teme, mas porque eles agem como tal (Trecho da entrevista com a Guarda-cantora, 2022).

Nesse sentido, a Guarda-cantora problematiza este território regulado pelo medo, pela zona de tensão, destacando uma outra composição de coexistência a partir dos campos diferentes. Aqui ressalto que, quanto mais mergulhei em um território diferente do que habito, mais questionei os traços de colonialidade da branquitude, da militarização da polícia e da política, da hierarquia da cidade e do aniquilamento de alguns corpos. Essas são questões que interseccionam a condição de violência cotidiana das/dos personagens da pesquisa e têm efeitos em relação aos nossos avizinhamentos.

43.4 Conversações ficcionais entre violências e resistências

A intencionalidade da dimensão de vizinhança foi nossa aposta de travessia entre lugares diferentes. Se, com a necropolítica, a ficcionalização do inimigo cria territórios fixos cujo principal objetivo é delimitar para apagar as diferenças com a exclusão de várias existências, apostar na vizinhança pelo plano da alteridade desmancha fronteiras entre territórios fixos. A nova gestão neoliberal da diferença traça trâmites de adaptação, adequação e dominação ao que difere, contrapondo-se a isso tem-se que “a travessia é o lugar da incerteza, da não evidência, do estranho…. atravessar é ao mesmo tempo saltar um muro vertical infinito e caminhar sobre uma linha traçada no ar” (Preciado, 2020, pp. 32-33).

Como Artista-articulador, ele pôde dar início à trama da conversação e escolheu a próxima pessoa a ser entrevistada, a partir de uma contextualização prévia sobre os objetivos da pesquisa. Ele destacou a importância de ouvirmos B-boy, articulador de juventude de uma outra equipe de trabalho da UGP-PV. B-boy é morador de um bairro agenciado por uma facção rival, mas consegue circular pelos dois bairros, o que não acontece com Artista-articulador pelos marcadores de violência que incidem sobre seu corpo por ser preto, tatuado e usar dreads. Como ele próprio nomeia, sou “flagrante” e “vetin”.

Essa visibilidade que Artista-articulador salienta sobre o risco dos corpos dos “vetins” é a descrição da criminalização do jovem preto, pobre e periférico, a qual é problematizada e desnaturalizada como categoria analítica por várias teóricas do campo da psicologia social, como Cecília Coimbra (2005), Lívia Nascimento (2005; 2002) e Estela Scheinvar (2009). A lente histórica, crítica e política dessas autoras interpela os cruzamentos entre pobreza, criminalidade e periculosidade nos processos de subjetivação das juventudes periféricas, sinalizando os efeitos dessa dimensão no Estado brasileiro e nos projetos de políticas públicas para essas populações.

A produção da subjetividade criminalizada tem, em nosso país, uma herança da escravização, ferida fundante na constituição de nossas percepções e subjetividades sobre a pobreza. Como efeito da racionalidade produtiva do capitalismo e das políticas neoliberais, as políticas públicas estruturam-se a partir de práticas higienistas, discursos de moralidade e cálculo de periculosidade. Essa maquinaria perversa define os papéis que algumas populações devem desempenhar no regime colono-cristão-capitalista, virtualidades que subjetivam os jovens periféricos e a cidade.

Nesse diapasão, Artista-articulador toca nessa ferida quando fala que seu corpo é flagrante, quando mostra a forma como a cidade é desenhada para favorecer alguns corpos e rejeitar outros. Ele recorda a experiência de subir ao palco da virada cultural no Arco do Triunfo para cantar no aniversário da cidade e a sensação de alegria ao cantar no palco principal da cidade, com tantas pessoas o ouvindo, um fragmento de glória, autoestima, realização pessoal e profissional, maculada pelo dar-se conta de que, na plateia, jovens periféricos sofreram um “baque” violento da polícia militar. Essa experiência de acesso parcial à cidade é demarcada na elaboração do seu mapa de vizinhanças. A circulação é um localizador-analisador que intersecciona os mapas de B-boy e Artista-articulador quanto ao acesso à cidade.

O jovem ilustra essa vizinhança quando chama B-boy para a entrevista e sugere algumas pistas relevantes para o acesso entre bairros “rivais”. Questionamos como as experiências de circulação entre bairros rivais feitas por B-boy provocam zonas de enfrentamento à necropolítica? Artista-articulador, então, coloca o grafite e o break como habilidades artísticas que favorecem essa passagem, recorda que B-boy já trabalhou em um centro educativo em regime de internação provisória para adolescentes de 12 a 16 anos do sexo masculino em conflito com a lei na cidade de Sobral que recebe jovens de ambos os territórios. Esses elementos são relevantes para desenhar o caminho que B-boy faz como enfrentamento ao impedimento de circulação que opera a necropolítica. Para B-boy:

O crime organizado respeita quem tá no outro corre, isso me ajuda na compreensão do respeito. O meu trabalho com hip-hop, break, no Zequinha Parente…. A gente sabe que é um processo difícil estar no crime, mas, ao mesmo tempo, é muito fácil aderir, e a galera que tá lá sabe que é muito difícil você não entrar (Trecho da entrevista cartográfica de B-boy, 2022).

Outra pista que Artista-articulador problematiza como relevante para o acesso e a circulação tranquila no próprio bairro é ser visto como trabalhador das políticas públicas. A articulação de processos formativos que agenciam certificados para os jovens, acesso a cursos e/ou retorno aos estudos são espaços de livre circulação no bairro. O diálogo com Artista-articulador complexifica as políticas formativas na periferia, cujas noções como proteção, acesso, certificação e direitos educacionais estão atreladas a formas estruturais de violência e dificuldades no acesso à renda que lançam populações à precariedade.

O diálogo crítico com o agente da política pública expressa como noções de raça, classe e território impactam no acesso a políticas do conhecimento, já que, em territórios vulnerabilizados pela violência, as questões de limitação de circulação influenciam nas políticas de formação. O enfoque que traz para essa questão não é de uma formação conteudista, produtiva, que visa somente ao certificado, mas de uma amplificação da importância da informação e do conhecimento nos contextos de vulnerabilização.

Queria tentar ensinar para esses pivetes onde você chega por conta de um certificado. Ensinar para esses pivetes não esquecer da periferia, mas poder sair de lá e levar as coisas para que outras pessoas tenham acesso. Tem gente que não sai da quebrada nem para ir no centro, tem gente que não pode. Tem gente que só conhece ali, tá com 5, 6 anos só tá ali dentro. Você pode fazer vínculo, criar laços com um número limitado de pessoas, isso diminui muito quando você tem o lance de limitação de circulação no território (Trecho da entrevista com Artista-articulador, 2022).

As modalidades de representação disponíveis para as violências em um sistema colono-capitalista nos apreendem em significações de opressões e repressões que parecem muito difíceis de ser enfrentadas macro e micropoliticamente. É fundamental, portanto, tomar como horizonte político e ético a noção de território pelas lentes das resistências e não das vulnerabilidades. A noção política de produção inclui as práticas de resistências e as lutas em curso pelas quais as populações vulnerabilizadas constroem a persistência na vida e não somente sobrevivem ao aniquilamento dela. A imagem que nos move a essa conversação é de uma comunidade de aprendizagem, “afetada pelo nosso interesse uns pelos outros, por ouvir a voz uns dos outros, por reconhecer a presença uns dos outros.” (hooks, 2017, p. 17).

Nessa perspectiva, apresentamos a seguir três cenas que podem ser lidas a partir de localizadores-analisadores elaborados pelo cruzamento dos mapas de vizinhanças de Artista-articulador, B-boy e Guarda-cantora. Um diálogo que convida, à Margem do rio Acaraú, Estado violento e Cartógrafa-formadora atuante nas políticas públicas a comparecer nas reflexões.

As leituras que nos acompanharam nessa travessia e que nos ajudaram a problematizar as três conversações foram as questões sobre uma sala de aula multicultural, territorial e dissidente com bell hooks (2017) e a revolução menina para uma educação libertadora em direitos humanos com Kohan (2021).

43.4.1 Vozes que não podem ser silenciadas pela subjetividade criminalizada – como se o menino tivesse andando no céu

No Mapa de vizinhanças, B-boy desenha o território como um lugar fértil para a imaginação. Ele cola a fotografia da formação em parkour da UGP-PV que mostra uma criança “brincando no céu” e faz um depoimento poético sobre a ilusão de ótica da imagem que merece ser considerado sem muita pressa.

Acho que essa imagem é muito interessante pela forma que ela foi tirada, é como se o menino tivesse andando no céu. Eu acho que isso aqui é próximo do que a gente tenta fazer no território: andar no céu mesmo que esse céu esteja longe. Quem mora na periferia experimenta isso muitas vezes, é muito massa você sair à noite e ver muita gente na calçada. Você vai para o centro, e não tem as pessoas conversando na calçada, e na periferia, apesar de tudo que acontece, tem criança jogando bola no meio da rua e empinando pipa. Acho que isso é como a pessoa morar na periferia e andar no céu ao mesmo tempo (Trecho da entrevista cartográfica de B-boy, 2022).

A construção de um processo formativo com várias vozes, estabelece-se em vizinhança com a ideia de bell hooks sobre uma comunidade de aprendizagem e/ou sala de aula como prática da liberdade, quando as estratégias de ensino consistem em direcionar a atenção para as vozes uns dos outros, ligando o conhecimento ao ato de partilha de narrativas pessoais, usando “estrategicamente esse ato de contar – achar a própria voz para também poder falar livremente sobre outros assuntos.” (hooks, 2017, p. 199)

O território é muito diverso, às vezes tem situações que eu não gostaria de aprender…. Ter a presença de situações muito nocivas tão cedo na vida desestrutura uma certa vontade de querer ser algo ou então querer fazer algo massa…. ver corriqueiramente coisas pesadas, arma, droga, briga entre família, vizinhos (Trecho da entrevista cartográfica do B-boy, 2022).

No fragmento Quando o sol aqui não mais brilhar: a vida só existe após a morte, a autora Castiel Vitorino Brasileiro (2022) estabelece um pensamento crítico sobre a morte como uma transmutação da forma rumo à escuridão, não a um fim. A autora aposta na vida após a morte como um inevitável encontro com a mudança, não com o esquecimento. Importante destacar a distinção que a autora faz entre morte e aniquilação. A aniquilação é como um ato colonial, como o que B-boy traz como sofrimento e violência.

… Por aniquilação entendo a gestão da vida mediante a racialização, uma gestão de controle populacional, operada pela violência policial e pela precarização da saúde dessas pessoas, por exemplo. A aniquilação interrompe histórias pessoais e coletivas e anuncia a morte como um portal para o esquecimento. Nesse sentido, a modernidade assassina com a promessa (e com o trabalho para) que aquela vida será esquecida, assim como seus feitos (Brasileiro, 2022, p. 52).

Nesse sentido, a partir do diálogo entre B-boy e Castiel, compreende-se que não é possível aprender com a aniquilação, porque esse ato colonial é uma violência. Quais outros sentidos se abrem, então, para a produção de conhecimento em contextos vulnerabilizados pela violência letal? Artista-articulador responde sobre a luta em curso e a vida que se mobiliza nesses contextos,

Uma das coisas importantes que eu ensino para os pivete é ser resistência. Saber do lugar onde você mora e tentar acessar outros espaços não porque você quer chegar ali se metendo nos espaços dos outros, mas porque é um espaço que você deve ocupar (Trecho da entrevista cartográfica do Artista-articulador, 2022).

43.4.2 A gente podia ir na margem do rio

Na cenografia do crime de violência letal na cidade de Sobral, os bairros que estão nas fronteiras das margens do rio são agenciados por facções rivais, o que torna a Margem do rio uma personagem ainda mais importante para as reflexões sobre o enfrentamento à necropolítica. A margem esquerda, como é dita popularmente, foi escolhida por dois personagens como espaço da entrevista. A expressão “a gente podia ir na margem do rio” dita pela Guarda-cantora e pelo Artista-articulador quando os questionei para onde desejavam ir, esse local figura um localizador-analisador interessante no contexto de seus mapas de vizinhanças, pois põe em visualidade um lugar da cidade que é habitado por populações gritantemente diferentes, imerso em expressivas desigualdades sociais, culturais, religiosas, políticas e econômicas.

O diálogo dos personagens na margem do rio nos aponta conhecimentos sobre a circulação em zonas vulnerabilizadas. Artista-articulador tornou a margem rio um território possível de circulação mesmo distante do seu território, e refletimos como ele subjetiva a cidade para produzir conhecimentos de resistência ao calcular o risco, dimensionar os horários, estar acompanhado com mais pessoas.

Guarda-cantora trabalhou na margem esquerda do rio por cinco anos, e, durante a entrevista, várias pessoas que circulavam entre nós a cumprimentavam de forma afetiva. Questionei como era curioso as pessoas a reconhecerem mesmo sem a farda, já que esse pode ser um elemento que imprime outra imagem, conforme ela mesma disse na formação em 2019, quando falou sobre se sentir mais à vontade para cantar sem farda. Ela respondeu:

Isso sempre ocorre, a minha imagem não corresponde. Isso é muito engraçado. Mas me acho simpática, por isso as pessoas falam comigo e lembram de mim. Intervi dizendo que a gente tem uma ideia que a segurança não pode ser alegre, sorridente, né? (Trecho da entrevista cartográfica da Guarda-cantora, 2022).

Nesse diálogo sobre imagens, intervi com uma conexão com o mapa de vizinhanças do Artista-articulador. Mostrei a composição que ele fez com a fotografia, na qual figurava a guarda municipal, tirada durante a formação, ele tira apenas a imagem dela e a dispõe perto da imagem da equipe da UGP-PV. Ele ressalta que não colocou os guardas municipais no seu mapa por reconhecer alguns profissionais que já tiveram condutas repressivas com adolescentes do território. Nesse momento, falei como ele a reconheceu na fotografia e como os amigos dele a acharam uma pessoa legal por ter tido uma conduta respeitosa em outra ocasião.

Nessa cena analítica da fotografia, é possível refletir sobre a possibilidade de construção dos vetores de vizinhança a partir de uma experiência de não aniquilamento. A experiência de respeito que o jovem viveu com a Guarda-cantora contribuiu para a decisão de proximidade, ao contrário das experiências de silenciamento e desrespeito que ele já viveu com os outros guardas.

43.4.3 Lentes de uma educação menina em direitos humanos

Neste tópico, a dimensão da lente é um localizador-analisador relevante para a pesquisa, cruzando as imagens dos mapas de vizinhanças dos personagens com minhas implicações como artista visual e cartógrafa-formadora. Para esse diálogo, recorro a um texto potente de Walter Kohan em alusão ao tempo da intensidade da educação libertadora, uma releitura da palestra do Paulo Freire na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no dia 2 de junho de 1988, intitulada “Direitos Humanos e Educação Libertadora”. Nessa fala, a meninice e a infância expressam-se como movimento político na obra de Freire no sentido de

… Um certo caráter inacabado da luta política e da educação que a acompanha, uma certa tarefa de manter sempre viva e, no início, a luta política pelo gosto da liberdade, ou seja, manter a luta política como uma luta infantil, menina; uma luta que começa, mas nunca termina (Kohan, 2021, p. 7).

Nesse sentido, tomamos como análise as produções dos mapas de vizinhanças de Artista-articulador, B-boy e Guarda-cantora que compõem com as fotografias das infâncias do território imagens de luta, de resistência e meninice para uma educação crítica e libertadora em direitos humanos. Os três personagens da pesquisa convidam às infâncias para compor seus mapas a partir de um território que se faz vivo e imaginativo pela presença brincante do menino no céu, como lido por B-boy, ou uma menina cantora, que trama com os grupos de quadrilha do bairro uma voz que nunca se cala, como compõe Guarda-cantora.

Paulo Freire coloca a questão da reinvenção do poder como sentido principal de uma educação em direitos humanos em uma perspectiva progressista ou libertadora. Entendendo “… a transformação social não apenas a partir da tomada do poder, mas a partir de um novo jogo ou exercício de poder, com uma participação maior, mas também mais crítica e afetiva dos grupos populares tradicionalmente excluídos” (Kohan, 2021, p. 7).

O jogo de deslocamento nas imagens proposto pelo mapa de vizinhanças cultivou uma pedagogia de perguntas. A fotografia com o grupo da guarda municipal que participou da formação da UGP-PV em 2019 foi composta de três modos diferentes a partir da perspectiva de cada interlocutor(a). Quando viu a fotografia, Guarda-cantora foi acometida por risos: “Eita, eu sai quase cortada da foto”. A fotografia não é uma representação da realidade, mas uma produção que possibilitou interstícios de conversa sobre a formação anterior realizada pela UGP-PV sobre os conhecimentos acerca dos direitos humanos. Artista-articulador produziu outros sentidos sobre a mesma imagem, revelando as questões de gênero e raça, observando quantos guardas municipais são negros e quantas eram mulheres, rememorando experiências truculentas desses agentes no território e cortando a imagem da guarda-cantora do restante do grupo para trazê-la para perto da fotografia de sua equipe de trabalho na UGP-PV.

Pomo-nos a pensar que, entre a experiência de quase sair cortada de uma das imagens para literalmente ser cortada para produzir vizinhança em um outro lugar, há um caminho que nos faz pensar sobre as experiências de inclusão, exclusão e aniquilamento. Nesse caminho, B-boy cria um outro vetor que contribui para a conversa, pois cola a fotografia da guarda municipal sob outra perspectiva, posicionando-a em vizinhança à fotografia de uma menina com uma câmera fotográfica que olha para a guarda. Como considero fértil nosso diálogo sobre esse movimento de intervenção no mapa, reproduzo-o abaixo na íntegra.

B-boy: Acho que aqui [aponta pra foto dos guardas] era pra ser uma galera de lá [aponta para imagens da periferia]. A segurança pública deveria ser feita por pessoas e não por fardas. Coloquei ela fotografando os guardas porque eu queria que ela visse os guardas que a gente não vê. Que ela visse não guardas, mas pessoas que guardassem a periferia. As instituições de segurança não guardam as pessoas, os direitos das pessoas de ir e vir. Na minha visão, essa menina está vendo uma espécie de guarda que guarda os direitos humanos.

Cartógrafa-formadora: a forma como você compôs a imagem me fez pensar. Nesse movimento, você saiu da oficina de fotografia lá do morro, que a menina participava como estudante, e a levou para ser formadora de uma educação em direitos humanos com os guardas. Houve um deslocamento aí. (trecho da entrevista cartográfica do B-boy, 2022).

É inspiradora essa referência à menina que olha uma guarda municipal que está por vir, que, com seu olhar-menina, de meninice e infância, pode ser de outro modo, pode guardar a periferia no sentido de proteção e direitos. Essa elaboração do B-boy reverbera aquilo que Kohan e Paulo Freire falam sobre uma educação-menina. A cena de uma menina que vê ecoa o que diz bell hooks (2019) sobre a teimosia que há em olhar:

Ao pensar sobre as espectadoras negras, lembro de que fui punida na infância por ficar encarando, pela forma firme e direta com que as crianças olham para os adultos, olhares que eram vistos como confrontação, gestos de resistência, desafios à autoridade. O “olhar” sempre foi político na minha vida. Imagine o terror que a criança sente quando, após repetidas punições, vem a entender que o olhar pode ser perigoso. A criança que aprendeu tão bem a olhar para o outro lado quando preciso. No entanto, quando punida, os pais lhe dizem: “Olhe para mim quando falo com você!”. Só que a criança tem medo de olhar. Tem medo, mas é fascinada pelo olhar. Há poder em olhar (p. 356).

Quando B-boy movimenta a fotografia e traz à menina a condição de vidente-formadora, inspira-nos a construir um deslocamento de poder, inclusive intersecciona raça, gênero e idade, mobiliza a guarda municipal tão branca, masculina e adulta para outra imagem de potência. Há, pois, nisso uma referência ao que Paulo Freire chama de “revolução menina”.

… E menina, ali, é um qualificativo que não tem o sentido etário, de uma curta idade; não é menina, Paulo Freire afirma explicitamente, por ser “recém-chegada”, é menina “pela sua curiosidade, sua inquietação, seu gosto de perguntar, por não temer sonhar, por querer crescer, criar, transformar (Faundez, 2017, como citado em Kohan 2021, p. 8).

Nesse fragmento inspirador, o que faz viva uma revolução é o que faz viva uma educação em direitos humanos. Em outras palavras, aprender com a imaginação política de B-boy a manter-se menina no sentido de formadora, questionadora, sonhadora, na luta por outro mundo.

43.5 Um convite para tecer encontros futuros

O “Mapa das zonas de vizinhanças” é um dispositivo formativo artístico-político que interpela diferentes campos de atuação profissional. É um instrumento que pode produzir múltiplas vizinhanças, não somente entre territórios vulnerabilizados e entre agentes da política pública, mas também entre outras instituições formativas, artísticas, pondo em conversação o encontro de diferenças.

Em vista disso, convidamos leitoras e leitores a caminhar por este Mapa através do Qrcode abaixo, deste link ou adiante neste capítulo. Ressaltamos, ainda, que as questões trazidas neste ensaio foram cultivadas a partir desse dispositivo metodológico, intitulado “Mapa das zonas de vizinhanças”. Nosso interesse é que o contato com este material possa compor planos de conversação para outras políticas e práticas; que se mantenha apoiado na singularidade de cada grupo que possa vir a vivenciá-lo como método, que forje encontros e ficcionalize formações futuras a partir das lentes de uma educação-menina em direitos humanos.

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43.6 Mapa das zonas de vizinhanças: tecnologia para encontros (im)possíveis no fazer políticas públicas de guardas municipais e articuladores da juventude em territórios vulnerabilizados de Sobral

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Referências

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