25  A interface Psicologia e Saúde: desafios para a formação profissional

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Universidade Federal do Piauí

Universidade Federal do Piauí

25.1 Introdução

Com a implantação do Sistema Único de Saúde, em 1990, deu-se início à construção de um sistema de dimensão nacional e caráter público, com base em princípios e diretrizes, comuns a todo território brasileiro, previstos em sua Lei Orgânica (Leis n° 8.080/90 e n°8.142/90), orientada não apenas para o âmbito da assistência e gestão do SUS, mas também para a instância da formação para o campo da Saúde. Muito pouco se comenta a esse respeito, especialmente no âmbito da Psicologia, mas para responder às inúmeras modificações nos serviços e nas práticas de atenção e gestão em saúde provados pelo SUS, importantes alterações no processo formativo e no desenvolvimento de profissionais para atuarem neste âmbito foram e ainda são necessárias (Cavalheiro & Guimarães, 2011).

Desde o ano de 1986, quando foi realizada a I Conferência Nacional de Recursos Humanos em Saúde, o âmbito da formação de profissionais para o SUS estava dentre as pautas discutidas, verificando-se a necessidade de construção de programas voltados para este aspecto (Silva & Santana, 2015). Objetivando sistematizar e implantar uma política específica para a questão dos recursos humanos voltados ao SUS, foi instituído pelo Ministério da Saúde o Departamento de Gestão e Educação na Saúde (DEGES), este contido na Secretaria de Gestão e Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), que propunham a construção de uma política de âmbito nacional para a formação e o desenvolvimento de profissionais da Saúde. Para isto foram desenvolvidos programas como: polos de educação permanente, AprenderSUS, VerSUS, Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) e Residências Multiprofissionais. Contudo, apesar de os inúmeros avanços que tais programas representam para a questão formativa vinculada ao SUS, sua implantação e operacionalização apresentam diversos desafios, tais como:

  1. superação da ênfase em formações conteudistas e prioritariamente tecnicistas;
  2. discussão deficitária acerca de fatores sociais, étnicos, éticos e políticos, priorizando-se aspectos formais e técnicos do SUS e dos serviços;
  3. fragmentação da atuação em níveis específicos, distanciando-se de propostas integrativas, interprofissionais e intersetoriais (Cavalheiro & Guimarães, 2011).

Para além disso, conforme aponta Almeida Filho (2013), não podemos deixar de pautar que a crise no SUS é multifacetada, composta por fatores vinculados ao subfinanciamento e à ênfase em uma gestão burocrática, que pouco possui capacidade para adotar concepções que visem a práticas pautadas na integralidade e equidade em suas ações. Acresce-se a isso, ainda, o fato de haver distorções nos modelos de formação das profissões em saúde, dentre as quais podemos elencar: a construção de currículos fechados, com pouco embasamento interdisciplinar e interprofissional, o que promove a ênfase nas especialidades de cada área isoladamente e tem reverberação na manutenção do processo de alienação dos segmentos profissionais neste âmbito, dificultando a realização de trabalhos em equipes multi e interprofissionais nos serviços.

Dessa forma, o processo formativo para o campo da Saúde acaba, já durante a graduação, se constituindo como uma espécie de “especialização prematura”, marcada pela realização de poucos estudos gerais, que promovam uma ampla visão daquilo que constitui o campo de saber da Saúde, do processo saúde-doença, bem como do cuidado pautado no referencial crítico das necessidades da população e da determinação social da saúde (Almeida Filho, 2013). Tais afirmações podem ser demonstradas por estudos que têm destacado a ênfase dada durante a formação em saúde para conteúdos teóricos e práticos que focam em aspectos segmentados do indivíduo, voltados para características biofisiológicas, desconsiderando a necessidade de compreensão, por parte do graduando, do processo de saúde-doença, integrado às características sociais, históricas e políticas da população (Damiance & al., 2016).

Ao discorrerem sobre o âmbito das políticas educacionais, Carvalho e Ceccim (2009) problematizam as graduações na área da Saúde, afirmando que elas não são direcionadas à formação teórico-conceitual e metodológica que promove à construção de competências voltadas à integralidade de suas ações no SUS. Muito pelo contrário, os processos formativos na área da Saúde ainda acumulam uma tradição conteudista, pautados no excesso de carga horária e compostos por disciplinas técnicas, desvinculadas de propostas que contemplem articulações com a pesquisa e a extensão, predominando o formato enciclopédico, orientado para a doença, buscando-se adquirir meios interventivos de reabilitação/cura do usuário.

A Psicologia tem figurado como uma importante profissão no âmbito da Saúde, com ampliação significativa da sua inserção e atuação nos diferentes níveis e serviços no SUS. Contudo, para Carvalho, Bosi e Freire (2009), desafiado a inserir-se no campo da Saúde Coletiva, o(a) profissional da Psicologia defronta-se com um complexo contexto, no qual a dinâmica e historicidade são expressas por meio do modelo assistencial em vigor. Tal modelo é marcado por questões de ordem política e por culturas profissionais que causam descompassos com os princípios e parâmetros que contemplam o SUS. Os autores reiteram que ao ingressarem no campo da Saúde, psicólogos(as) acabam por recorrer aos conhecimentos pautados na prática clínica tradicional, não realizando revisões e contextualizações necessárias para orientar seu saber-fazer profissional no SUS.

Dimenstein (2001) endossa esse debate apontando que, mesmo que a entrada mais massiva de psicólogos(as) nas instituições públicas de saúde tenha propiciado a ampliação dos locais de atuação profissional, tal cenário não promoveu mudanças significativas em relação aos norteadores conceitual-epistemológicos e metodológicos que alicerçam as ações desenvolvidas nestes espaços. Portanto, não foram realizadas atualizações expressivas para contextualizar tais marcadores, a fim de promover reinvenções nos parâmetros conceituais considerados tradicionais da profissão, estes voltados para o âmbito clínico-hospitalar privatista. É fato que houve avanços nesse sentido, conforme se aponta em estudos mais recentes (Dimenstein & Macedo, 2012), porém são aspectos que ainda não se hegemonizaram na profissão configurando uma nova realidade profissional para psicólogos(as) que atuam no SUS.

Partindo dessas problematizações e da necessidade de estudos que aprofundem as bases epistemológicas, metodológicas e ético-políticas da Psicologia no SUS, objetivamos analisar como a Saúde e, mais especificamente, o próprio debate em torno da Saúde Coletiva têm sido albergados na formação em Psicologia no Brasil, após o estabelecimento da Resolução Nº 8, de 7 de Maio de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em Psicologia e que a afirma como uma profissão da Saúde (Conselho Nacional de Educação, 2004).

25.2 Método

Trata-se de um estudo com delineamento documental ao voltar-se para análise dos Projetos Pedagógicos de Cursos de Psicologia (PPC) no Brasil, documentos estes disponíveis em domínio público (Gil, 2002). A fonte de produção dos dados foi a base de dados do Ministério da Educação a respeito do Ensino Superior no Brasil, que indicou, no Censo de 2019, a existência de 929 cursos de Psicologia, sendo 829 deles em instituições privadas e 100 em instituições públicas. Uma vez localizado nominalmente cada curso, realizou-se a busca pelos Projetos Pedagógicos dos Cursos de Psicologia (PPC), disponíveis em domínio público, na página eletrônica de cada Instituição de Ensino Superior (IES).

Após a localização dos referidos currículos, foi aplicado um filtro no conjunto de disciplinas, ementas e referências bibliográficas para localizar os componentes curriculares relacionados à Saúde/Saúde Coletiva. A busca por tais informações levou em consideração os seguintes descritores: “saúde coletiva”, gestão em saúde”, “planejamento em saúde”, “educação em saúde”, “educação permanente em saúde”, “epidemiologia”, “integralidade”, ‘multidisciplinar’, “multiprofissional”, “interdisciplinar”, “SUS”, “território”, “cuidado”, “práticas em saúde”, “cidadania”, “direito/direitos humanos”, “políticas públicas”, “políticas em saúde”, “políticas sociais”, e “saúde mental”. Todas as informações foram organizadas em um banco de dados constando a identificação da IES e dos componentes curriculares localizados.

A análise foi auxiliada pelo software IRAMUTEQ, que, articulado ao software R por meio da linguagem de computação Python, possibilita a efetivação de análises estatísticas sobre corpus textuais, bem como de tabelas constituídas por palavras. Tal software viabiliza diferentes tipos de análises de dados textuais, desde as mais simples, que abrangem o cálculo de frequência de palavras, até as mais complexas, que se caracterizam como análises multivariadas (Camargo & Justo, 2013). Nesse aspecto, optamos pela análise do Método da Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que classifica os segmentos de textos a partir de seus respectivos vocabulários, objetivando a construção de classes, que podem apresentar tanto vocabulário semelhante entre si, quanto diferente. Além disso, todas as análises realizadas no IRAMUTEQ foram interpretadas à luz dos fundamentos epistemológicos, metodológicos e ético-políticos da Saúde Coletiva. Por fim, por questões éticas, mesmo em se tratando de documentos disponíveis em domínio público, consideramos o anonimato dos cursos na apresentação das informações.

25.3 Resultados

O trabalho de busca dos Projetos Pedagógicos dos Cursos de Psicologia, disponíveis em domínio público, na página eletrônica de cada uma das 929 IES, retornou com 64 Projetos de Curso. Porém ao aplicar os descritores relacionados à Saúde/Saúde Coletiva, referidos anteriormente, foram selecionados, ao final, 30 currículos, que apresentaram componentes curriculares relacionados ao tema investigado, constituindo o corpus da pesquisa.

A fim de realizar uma caracterização mais geral do material analisado, organizamos os Projetos de Curso nas seguintes categorias: 12 cursos em IES Públicas e 18 em IES Privadas, sendo 3 localizados na região Norte, 12 na Nordeste, 3 na Centro-Oeste, 6 na Sudeste, e 6 na Sul. No que tange ao porte do município em que os cursos estão localizados: 10 situam-se em cidades de grande porte, 2 em cidades de porte médio-grande, 8 em cidades de porte médio, 6 em cidades de porte médio-pequeno, e 4 em cidades de pequeno porte.

Em seguida, verificamos cada um dos 30 currículos e encontramos pelo menos 727 disciplinas, consequentemente 727 ementas, além de 428 referências bibliográficas relacionadas com algum dos descritores em Saúde Coletiva que orientaram nossa busca. Posteriormente, tais componentes foram analisados separadamente em corpus textuais específicos, por meio do Método da Classificação Hierárquica Descendente (CHD), atingindo o critério mínimo apontado pela literatura de 75% de aproveitamento do corpus (Camargo & Justo, 2013).

A Figura 1 apresenta a primeira análise realizada a partir dos nomes das disciplinas dos PPC identificados. Nesta foram realizadas divisões sequenciais no corpus até se originarem 7 classes. A primeira divisão deu origem a três subcorpus. O primeiro subcorpus, “Atuação e Organização em Serviços”, é constituído pelas classes 6 e 1 e representa a segunda maior porcentagem dos segmentos de textos das disciplinas (29,2%). As palavras que caracterizaram esse subcorpus foram: “ética”, “profissão”, “profissional”, “gestão”, “intervenção”, dentre outras. O segundo subcorpus dividiu-se em dois: “Psicologia Escolar e Educacional”, que engloba a classe 5; e “Saúde Coletiva”, que é constituída pela classe 4. No que tange à classe 5, “Psicologia Escolar e Educacional”, esta corresponde a 16,4% dos segmentos de texto, sendo constituída pelas palavras: “educacional”, “clínica”, “psicopatologia” e “instituição”. A classe 4, “Saúde Coletiva”, representa 16,4% dos segmentos de texto, sendo contemplada pelas palavras: “interdisciplinar”, “coletivo” e “promoção”. Já o terceiro subcorpus, “Saúde Pública”, contempla as classes 2, 3 e 7. Tais classes, ao serem somadas, representam a maior porcentagem dos segmentos de textos das disciplinas (41,9%). As palavras que o representam foram: “direito”, “ambiente”, “aplicado”, “avaliação”, “público”, dentre outras.

Figura 25.1: Dendograma de Classes para o corpus dos nomes das disciplinas

No que tange à análise das ementas, seu resultado foi retratado na Figura 2, por meio da qual se nota que foram realizadas divisões sequenciais no corpus até se originarem 4 classes. A primeira divisão deu origem a dois subcorpus. O primeiro subcorpus deu origem à classe 4 – “Modelo Biomédico” –, enquanto o segundo se subdividiu em três, construindo as classes 1 e 2 – “Saúde Pública” – e 3 – “Saúde Coletiva”.

As classes 2 e 1, “Saúde Pública”, corresponderam a 15,26% e 26,39% dos segmentos de texto, respectivamente. Trata-se das classes mais significativas se comparado às demais, sendo constituídas por palavras relacionadas ao campo de Saúde Pública: “direito”, “público”, “comportamento”, “jurídico”, “civil”, “assistência”, dentre outras. A classe 3, “Saúde Coletiva”, representou 33,3% dos segmentos de texto. Esta faz referência a conteúdos que contemplam o campo de Saúde Coletiva e ao SUS, composta por palavras como: “saúde”, “atenção”, “SUS”, “coletivo”, “social” “reforma”, dentre outras. Ao que tange à classe 4, “Modelo Biomédico”, esta representa 24,6% dos segmentos de texto com referência a conteúdos da psicopatologia e dos manuais psiquiátricos diagnósticos, composta por palavras como: “clínico”, “caso”, “diagnóstico”, “avaliação”, “psicopatológico”, “transtorno”, dentre outras.

Figura 25.2: Dendograma de classes para o corpus de ementas

Quanto à análise das referências, o resultado está apresentado na Figura 3. As divisões sequenciais no corpus de referências originaram 4 classes. A primeira divisão gerou dois subcorpus. O primeiro dividiu-se, constituindo as classes 2 e 3; e o segundo, contemplando as classes 1 e 4.

As classes 2 e 3, “Saúde Coletiva”, representam 28,4% e 28,1% dos segmentos de texto, respectivamente, e, se somadas, representam o maior percentual (56,5%). Tais classes são constituídas por elementos relacionados ao movimento da Reforma Psiquiátrica e do campo de Saúde Coletiva, com destaque para as seguintes palavras: “saúde”, “coletivo”, “atenção”, “reforma”, “cultura”, “subjetivação”, dentre outras.

A classe 1, “Modelo Biomédico”, corresponde a 26,7% dos segmentos de texto, sendo constituída pelas seguintes palavras: “transtorno”, “semiologia”, “psicopatologia”, “diagnóstico”, “distúrbio”, “tratamento”, dentre outras. Em relação à classe 4, “Psicologia Organizacional e do Trabalho”, esta representa 16,9% dos segmentos, constituída pelos seguintes termos: “trabalho”, “organização”, “recurso”, “administração”, “gestão”, “capital”, dentre outras.

Figura 25.3: Dendograma de classes para o corpus de referências

Após a organização dos resultados por componente curricular analisado (nome das disciplinas, ementas e referências), apresentaremos as categorias que nortearam a discussão dos dados:

  1. Modelo Biomédico;
  2. Modelo de Saúde Pública e
  3. Modelo de Saúde Coletiva. Estes foram orientados pelos seguintes eixos analíticos:
    • concepções de saúde,
    • práticas e
    • norteadores ético-políticos.

25.4 Discussão

25.4.1 Modelo Biomédico

A categoria analítica a qual denominamos de “Modelo Biomédico” esteve relacionada com palavras em referência ao âmbito Psiquiátrico e Psicopatológico: “psicopatológico”, “transtorno”, “síndrome”, “diagnóstico”, “distúrbio”, dentre outras. Do total de ementas pesquisadas (n = 727) e referências bibliográficas (n = 428) nos 30 currículos analisados, pelo menos 24,96% (n = 181) das ementas e 26,7% dos títulos das referências (n = 113) estavam relacionados ao “Modelo Biomédico”.

No caso das concepções de saúde que orientam o processo formativo em Psicologia a partir do Modelo Biomédico, Sobrosa et al. (2014) problematizam que este modelo tem suas origens datadas no início do século XX, sendo caracterizado pelo entendimento de saúde como ausência de doenças, na medida em que enfatiza aspectos biológicos acompanhado de alterações fisiológicas como resultantes de desequilíbrios bioquímicos, lesões e/ou infecções:

“Principais escolas de psicopatologia. Diagnóstico em psicopatologia. Psiquiatria clássica. Psicanálise e Manuais diagnósticos atuais, a saber, a CID 10 e o DSM V. Significado e evolução dos conceitos de normalidade e patologia” (PPC 13).

Com exceção da referência à Psicanálise e ao indicativo da compreensão sobre a diferenciação de suas estruturas clínicas em algumas poucas ementas analisadas, no geral observamos a não presença de discussões mais críticas sobre as ementas aqui reunidas no sentido de problematizarem o paradigma hegemônico em saúde sob o ideal de cura e de colocarem em questão as noções de normal e patológico, possibilitando pouca (ou quase nenhuma) compreensão mais ampliada acerca dos processos saúde-doença-cuidado. Ao dar ênfase à formação em saúde para conceitos que têm suas bases epistemológicas pautadas nesse modelo, a Psicologia acaba por focar em aspectos segmentados do sujeito, voltados prioritariamente para descrição de características ou fenômenos psicológicos oriundos de alterações biofisiológicas ou da personalidade, as quais apoiarão marcadores teórico-metodológicos centralizados nas abordagens clínicas-terapêuticas (Bernardes & Guareschi, 2010).

Neste modelo formativo a definição de saúde recai em visões naturalizantes, trazendo somente um desenvolvimento previsto e ideal do homem. Posto isto, não se faz relação com as condições de vida e sociedade nem com os princípios do SUS em que está imerso. Ao contrário, segue por localizar no indivíduo os fatores causais que originam seu adoecimento, promovendo uma noção em que a saúde depende de um esforço único para recuperar um estado anterior perdido ou não deixar que algum problema de saúde futuro se instale (Camargo Jr, 2013).

Em relação às práticas abordadas que contemplam a categoria biomédica, estas possuem um viés curativo, de remissão dos sintomas, voltado principalmente para o âmbito clínico tradicional e hospitalar:

“Entrevista inicial, anamnese e de devolução. Diagnóstico clínico e intervenção clínica. O exame mental e a questão do diagnóstico. Identificação dos diferentes sintomas nas funções mentais e dos transtornos clínicos” (PPC 10).

Desse modo, a relação da Psicologia com a Saúde nos processos formativos aqui em tela adquire características próximas ao que Oliveira, Balard e Cutol (2013) denominam de “Modelo Flexneriano”. Este modelo pauta-se em aspectos anátomo-fisiológicos, direcionando suas ações para o agente etiológico e a posturas profissionais, que pouco contemplam aspectos sociais e históricos. Ao aproximar-se deste modelo, a formação em Psicologia apoia-se nas mesmas chaves de leitura para a compreensão do fenômeno psicológico, voltando-se para estudo da personalidade (no âmbito das estruturas estrutural e no do funcionamento).

Nesses termos, Cintra e Bernardo (2017) expõem que é preciso renovar o bojo de práticas apresentadas e discutidas durante a formação em Psicologia, não no sentido de negar o referido modelo, mas no de criar um constante processo de estranhamento ao paradigma biomédico, além de propiciar a inventividade dos alunos e professores na criação de novas estratégias interventivas. Dessa maneira, formar seria sinônimo de exercitar a autonomia criativa para produção de singularidades tanto teóricas, quanto práticas, ampliando assim as concepções sobre o processo saúde-doença/sofrimento-cuidado.

Em relação aos norteadores ético-políticos que contemplam a categoria biomédica, tais conceitos se restringiram ao código de ética profissional, contemplando questões sobre o sigilo profissional e a produção de pareceres e laudos:

“Principais fundamentos do código de ética profissional dos psicólogos. Estrutura e Administração do Conselho Profissional de Psicologia e Legislações atuais. Ética na prática profissional. Sigilo profissional” (PPC 7).

Nota-se a ênfase dada na formação a aspectos ético-políticos restritos a posturas profissionais consideradas normativamente adequadas e condizentes com o código de ética profissional na Psicologia. Este cenário corrobora as problematizações de Dimenstein (2001) ao afirmar que a perspectiva dominante da atuação de psicólogos no campo da Saúde mantém-se afastada de compromissos sociais e políticos na profissão, com base nas necessidades concretas do território.

25.4.2 Modelo de Saúde Pública

A categoria analítica a qual denominamos de “Modelo de Saúde Pública” esteve relacionada a 41,9% (n = 305) dos segmentos de textos relacionados aos nomes das disciplinas e às ementas. Tal modelo, de acordo com Souza (2014), se refere a uma parte da Medicina que se propõe a intervir sobre a administração pública a fim de manter a população saudável, a partir de um aglomerado de normas e regras que devem ser seguidas pelo sujeito e pela sua família. Saúde, portanto, passa a ter uma concepção pautada na administração de programas, serviços, ações, que regulam o comportamento de indivíduos e determinados grupos populacionais a fim de diminuir fatores de risco que comprometam a saúde, além de promover e estabelecer hábitos e estilos de vida saudáveis:

“Abordagem introdutória à Saúde Pública. Fontes de dados de morbidade e mortalidade. Dinâmica populacional. Estatística vital e indicadores de saúde. Incidência e prevalência” (PPC 5).

Partindo disso, ao enfatizar durante o processo formativo em saúde arcabouços teórico-práticos pautados no modelo de Saúde Pública, a Psicologia acaba por focar somente na ampliação de seu espaço de atuação neste âmbito, sendo sua práxis apoiada na normatividade de ações e desenvolvida a partir de um viés burocrático e informativo. Desse modo, foca-se no desenvolvimento e na aplicabilidade de instrumentos que abarquem uma quantidade maior de pessoas, mas que ainda se mantenham centralizados no agente etiológico de ordem individual e privatista, mesmo quando adotam vieses de prevenção e de promoção em Saúde (Souza, 2014).

Em relação às práticas abordadas durante o processo formativo que contemplam o modelo de Saúde Pública, estas se focam no processo de ampliação do modelo clínico hegemônico ao âmbito social, a fim de abarcar um número maior de pessoas, sendo pautadas em práticas de saúde numa perspectiva tão multidisciplinar quanto possível:

“Diagnóstico e intervenção em Saúde Pública. Planejamento, execução e avaliação de intervenções características do exercício profissional do psicólogo na Saúde Pública” (PPC 28).

Ao focar na apresentação de instrumentais durante a formação em Psicologia que priorizam ações isoladas a partir de uma epidemiologia tradicional e descritiva, restringe-se este processo a norteadores teórico-metodológicos limitados a meios de trabalhos característicos da Saúde Pública. Por conseguinte, a formação em Psicologia centraliza suas ações na concepção biologicista da saúde, por meio do desenvolvimento e da participação em campanhas de saúde específicas e desarticuladas dos demais setores (Educação, Assistência Social, Segurança, dentre outros) (Souza, 2014).

Em relação aos norteadores ético-políticos dos currículos que contemplam a categoria de Saúde Pública, tais conceitos se restringiram a discussões normativas por meio de cartilhas, estatutos e códigos que englobam o campo dos direitos e deveres civis:

“Constituição de 1988. Estatuto da Criança e do Adolescente. Políticas de direitos para crianças, adolescentes e idosos. Possibilidades de atuação profissional nas políticas de direito” (PPC 3).

Diante dessa visão marcada pela ênfase de uma ilusória neutralidade profissional frente às causas políticas e sociais, são construídos no processo formativo em Psicologia binarismos que separam sujeito e objeto, interior e exterior, indivíduo e coletivo, clínica e política, clínica e saúde coletiva, enfim, Psicologia e Política. Tais divisões promovem noções conceituais expressando tais categorias como dialeticamente opostas, afastadas e naturalmente diferentes, isso com intuito de conferir um grau considerado de cientificidade à Psicologia (Bernardes & Guareschi, 2010)

25.4.3 Modelo de Saúde Coletiva

Esta categoria teve a seguinte representação nos componentes curriculares dos 30 Projetos de Curso investigados: por um lado, do total de 727 disciplinas analisadas, identificamos apenas 16,4% (n = 117) dos componentes de texto; por outro lado, do total de 727 ementas, identificamos 33,33% (n = 241); e, do total de 428 referências, identificamos 56,5% (n = 243) dos componentes de textos relacionados aos títulos das obras como sendo do campo da Saúde Coletiva.

Scarcelli e Junqueira (2011) afirmam que o campo de Saúde Coletiva busca concepções acerca do processo saúde-doença-cuidado que ultrapassem as fronteiras do modelo biomédico, marcado pela ênfase na doença. Em vista disso, compreendem esse processo como fruto de um conjunto dos fatores físicos, psíquicos e socioeconômicos a que os sujeitos estão submetidos:

“A gestão da Saúde no Brasil. O SUS e o Programa de Saúde da Família. A atenção integral em Saúde Coletiva. A atuação dos profissionais nas políticas públicas de saúde” (PPC 1).

Para Paim e Almeida Filho (1998), o importante nessa amplitude de concepções acerca do conceito de saúde que contemplam o campo de Saúde Coletiva é compreender que existe mais de uma verdade e que estas assumem diferentes posicionamentos a depender das necessidades sociais do território, ou seja, dos aspectos relacionados às determinações sociais da saúde. Dessa forma, a construção de formações em saúde na Psicologia a partir de interseções com o modelo de Saúde Coletiva propicia a adoção de estratégias pedagógicas que ultrapassem o modelo tradicional de ensino-aprendizagem. Por conseguinte, não existem modos considerados corretos de fazer ou modelos formativos ideais, mas processos marcados por norteadores conceituais e práticos criados e recriados a partir da necessidade de cada realidade local em que tais cursos estão inseridos (Scarcelli & Junqueira, 2011).

Em relação às práticas abordadas nos currículos analisados que contemplam o modelo de Saúde Coletiva, estas tomam como objeto as necessidades sociais de saúde, utilizando-se de tecnologias materiais e imateriais, além de ações centradas em diferentes grupos sociais e territórios (Paim & Almeida Filho, 1998):

“Questões da prevenção primária, secundária e terciária. Familiarização, Territorialização. Levantamento de Demandas e Planejamento de Intervenções. Identificação e Hierarquização de Necessidades e Recursos” (PPC 7).

Tais resultados corroboram a afirmação de Paim e Almeida Filho (1998) ao apontarem que as “ferramentas” do profissional em Saúde Coletiva são produzidas a partir da organicidade das ações e construídas socialmente. Desta maneira, segundo os autores, tais ações promovem uma dupla-face ao profissional: o de técnico de necessidades de saúde e na gestão dos processos de trabalho em saúde, inclusive de gestão do fazer clínico, ou mesmo da gestão de serviços e do trabalho pelas redes setoriais da saúde e intersetoriais das políticas públicas presentes no território.

Em relação aos norteadores ético-políticos abordados nos currículos que contemplam a categoria de Saúde Coletiva, estes, além de abarcar os âmbitos técnico, econômico e ideológico, envolvem um projeto de profissão vinculado à emancipação dos seres humanos, por meio de um conjunto de conceitos e práticas voltadas para as necessidades sociais:

“Possibilidades de atuação profissional nas políticas de direito. Psicologia e campo de direitos. Psicologia e compromisso social. Cultura. Política. Sociedade. Ideologia. Democracia. Poder. Movimentos sociais e cidadania” (PPC 28).

Birman (1991) ressalta tal dimensão ético-política ao apontar que o discurso médico naturalista sempre colocou à margem do processo saúde-doença-cuidado a dimensão política do cuidado em saúde. Dessa forma, a Saúde Coletiva seria uma das alternativas para o processo de reestruturação do campo da Saúde e da própria Psicologia no que refere a esse campo, por meio do destaque dado em seus norteadores teórico-conceituais a dimensões éticas, políticas e simbólicas, na medida em que relativiza a hegemonia do discurso anátomo-fisiológico, sem desconsiderar sua importância na formação profissional.

25.5 Considerações finais

Ao analisarmos, em linhas gerais, acerca do modo como a Saúde e o campo da Saúde Coletiva constituem a formação em Psicologia, a partir dos cursos investigados, notamos avanços principalmente no âmbito curricular. Nesse sentido, podemos destacar a ênfase dada nas ementas, especialmente em relação às referências bibliográficas, a norteadores teórico-metodológicos e ético-políticos relacionados ao modelo da Saúde Coletiva bastante pertinentes e consonantes ao debate proposto na atualidade. Contudo, nota-se a força do campo tradicional de Saúde Pública e do modelo Biomédico alicerçando os processos formativos com conceitos, modelos e norteadores práticos para atuar na Saúde.

Neste sentido, faz-se necessário romper com propostas curriculares que reafirmam arquiteturas verticalizadas, ou seja, definidas a priori somente por instâncias administrativas e tecnificadoras sem levar em consideração as realidades locais. É urgente articular cenários de práticas em que os cursos estejam em sintonia com os serviços e as dinâmicas da população em geral, fortalecendo inclusive a formação interdisciplinar e interprofissional, bem como as competências voltadas para a gestão dos processos de trabalhos das equipes e entre os serviços, se quisermos avançar com formações mais bem qualificadas para atuar a partir do SUS (Batista & Gonçalves, 2011).

Por fim, entendemos que os fundamentos teórico-epistemológicos, técnico-operativos e ético-políticos do amplo campo de discussões da Saúde, sob a perspectiva do Movimento Sanitário Brasileiro e da Saúde Coletiva, precisam ser ampliados e fortalecidos nos processos formativos dos cursos de graduação em Psicologia, inclusive com ênfase em uma formação interprofissional, para que nossa ciência e profissão avance nesse campo como um núcleo de conhecimento potente e articulado com outros, capazes de ofertar ações de cuidado mais resolutivas, integrais e continuadas, prenhes de inovações e transversalidades que aumentem a resistência de continuarmos a sustentar o Sistema Único de Saúde, mesmo em meio à lógica privatista que recai sobre a Saúde Pública brasileira.

Referências

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